Fico verdadeiramente intrigado com os nomes de batismo das operações da Polícia Federal; de fato, a corporação se esmera na escolha desses nomes. Parece que existe uma intenção de antecipar para a sociedade os limites, o alcance e a natureza de cada uma delas. Fico imaginando se existe, por lá, um erudito dedicado à função – parece que sim. De todos eles, o que mais provocou a imaginação foi, sem dúvida alguma, o da 19ª fase da Operação Lava Jato: Nessun Dorma.
Não sou um versado em óperas. Que me perdoem os especialistas, mas vamos tentar um breve resumo. “Nessun dorma” é uma famosa ária do último ato da ópera Turandot criada por Giacomo Puccini, que foi concluída em 1926, um ano após a sua morte. Como vários compositores terminaram tal ópera, ela possui finais diferentes. Isso a rigor significa que outros finais, mais ou menos felizes, ainda podem ser escritos.
Na ópera ambientada na China, a linda princesa Turandot, por vingança contra estrangeiros – que no passado violentaram e mataram uma de suas ancestrais – não quer se casar. No entanto, seu pai, o imperador Altum, determina que ela se case com algum príncipe estrangeiro.
Depois de muito tempo e muito contrariada, Turandot aceita a exigência paterna, mas estabelece uma condição para se casar: o pretendente a ser escolhido seria aquele que resolvesse três enigmas que ela escolheria. Se o pretendente acertasse todos, ela se casaria; caso contrário, ele deveria ser morto. Assim, ela cria uma condição quase impossível de ser satisfeita e com baixas probabilidades de ser aceita – três chances de morrer e uma para com ela se casar.
Um príncipe tártaro, jovem, desconhecido e muito destemido, chamado Calaf, aceita o desafio de tentar resolver os três enigmas. Ele tinha em comum a mesma origem daquele que havia violentado a ancestral de Turandot: ambos eram tártaros. Dessa maneira, não restava ao príncipe outra alternativa a não ser esconder o seu nome e sua origem – continuaria a ser um jovem e destemido príncipe desconhecido.
Enlouquecida fica a princesa quando Calaf resolve os três enigmas, e suplica com todas as suas forças que não seja entregue ao desconhecido. Diante da reação da bela Turandot, Calaf, apaixonado que estava, desejoso de que ela viesse para com ele se casar pela sua própria vontade, oferece uma saída para a princesa: decifrar um novo enigma. A princesa estaria desobrigada do casamento caso ela acertasse o seu nome; para isso, ela teria uma longa noite para descobrir o nome do príncipe desconhecido. Caso ela tivesse sucesso, ele seria condenado à morte.
A princesa dá uma ordem para todos os seus súditos: ninguém deve dormir naquela noite até que o nome do príncipe desconhecido seja descoberto. O pai do príncipe e sua escrava são presos, sendo a escrava torturada até a morte, sem, contudo, revelar o nome do príncipe – pois é apaixonada por ele.
Na longa noite, ninguém dorme, e ninguém descobre o nome do príncipe. Para Turandot, a aurora chega como um grande castigo, uma condenação ao casamento, só lhe restando o desespero e a tristeza. No entanto, para o príncipe, a chegada das cores, com o nascer do dia, trazia uma revelação – muitos anos depois, formulada por Lacan: de que amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer. Ele revela intencionalmente o seu nome para a princesa, livrando-a do compromisso e se condenando à morte. Desse modo, vida ele já mais não tinha para ser entregue a alguém que não o queria.
A princesa, completamente emocionada com a coragem e com a prova de amor do jovem, salva-o da morte, não pronuncia seu verdadeiro nome e prefere dizer que ele se chama Amor.
Que enredo é esse da 19ª fase da Operação Lava Jato?
Recuso-me a acreditar que o nome da Operação foi baseado somente no título “Nessun Dorma”; isso resumiria tudo a um único recado: aqueles que estão envolvidos em operações corruptas no âmbito da Operação Lava Jato, não durmam, pois a sua hora chegará. Seria somente uma demonstração de que não haverá queda de motivação, empenho e determinação nas investigações por parte da Polícia Federal.
Poderia ser, por outro lado, um aviso para toda a sociedade brasileira de que “Nessun Dorma”, enquanto houver a investigação? De fato não mais dormimos. No café da manhã, notícias sobre a nova, ou o desdobramento das já existentes operações da PF; no almoço, mais repercussões e, à noite, um balanço dos presos e indiciados. A sociedade não dorme, assustada com as contaminações da Operação na economia, com a crescente inflação e a queda nos níveis de emprego, com a política do Congresso Nacional, com a incapacidade, do governo e da oposição, de derrubar Eduardo Cunha. Perdemos o sono. Será que é esse o recado? Ou um aviso para que nos preparemos para uma grande e profunda insônia? A Operação foi deflagrada em 17 de março de 2014, já são quase 600 dias sem dormir.
Devemos nos preparar para as 1001 noites de insônia, ouvindo histórias maravilhosas sobre o mesmo tema, que são interrompidas ao amanhecer e retomadas na noite seguinte?
Porém, prestemos atenção na ópera: existem três enigmas a serem resolvidos. Serão eles o aprofundamento das investigações agora nas obras de Belo Monte, nas operações de Furnas e as duvidosas aplicações financeiras dos fundos de pensão? Existiriam outros possíveis enigmas? Os três enigmas dizem respeito a pessoas? Somente o príncipe tem a resposta para os três enigmas?
Suponho que, com as informações já disponíveis na Polícia Federal, esta já conheça os enigmas e, quem sabe, até tenha as respostas para eles. No entanto, a partir do momento em que eles são resolvidos, surge a necessidade da revelação do nome do príncipe. Ninguém dorme até que o seu nome possa ser revelado. Será que é o que estou pensando? As notícias sobre essas conjecturas na última semana ganharam substância e intensidade.
Como o suposto criador de nomes para as operações da Polícia Federal é um amante de ópera, ele sabe que Giacomo Puccini não concluiu a sua obra. O final possui caminhos abertos, e eles irão depender dos possíveis compositores escalados para o feito. A criação de Puccini termina no momento em que o príncipe resolve os três enigmas, e a princesa emite a ordem de que “Nessun Dorma”. Aí entra o príncipe, o tenor, e entoa:
Ninguém durma! Ninguém durma!
Tu também, ó princesa
na tua fria alcova
olhas as estrelas
que tremulam de amor
e de esperança!
Mas o meu mistério está fechado em mim
O meu nome ninguém saberá!
Não, não, sobre a tua boca o direi
Quando a luz resplandecer!
E o meu beijo escolherá o silêncio
que te faz minha!
E o seu nome ninguém saberá!
E nós deveremos, infelizmente, morrer!
Desavença, a noite!
Desapareçam, estrelas!
Desapareçam, estrelas!
Ao alvorecer eu vencerei!
Vencerei, vencerei!
Final por ser escrito. Não espero que o príncipe revele seu nome; ele sabe que está morto, pelo menos simbolicamente.
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