*Milton Marques, consultor da Innovare Pesquisa para projetos de opinião pública, é autor desse texto, exclusivo para o Sem Escala.
“A construção de uma identidade social, então, como a construção de uma sociedade, é feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões. Tudo isso nos leva a descobrir que existem dois modos básicos de construir a identidade brasileira: o de fazer o brasil, Brasil… Num deles, utilizamos dados precisos: as estatísticas demográficas e econômicas, os dados do PIB, PNB e os números da renda per capita e da inflação, que sempre nos assustam e apavoram. Falamos também dos dados relativos ao sistema político e educacional do país, apenas para constatar que o Brasil não é aquele país que gostaríamos que fosse. Essa classificação permite construir uma identidade social moderna, de acordo com os critérios estabelecidos pelo Ocidente europeu a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Mas, no caso do Brasil e de outras sociedades, o problema é que existe outro modo de classificação. A identidade se constrói duplamente. Por meio dos dados quantitativos, onde somos sempre uma coletividade que deixa a desejar; e por meio de dados sensíveis e qualitativos, onde nos podemos ver a nós mesmos como algo que vale a pena. Aqui, o que faz o brasil, Brasil não é mais a vergonha do regime ou a inflação galopante e ‘sem vergonha’, mas a comida deliciosa, a música envolvente, a saudade que humaniza o tempo e a morte, e os amigos que permite resistir a tudo…” Roberto da Matta
Tenho uma confissão a fazer: a sociedade brasileira me encanta. As suas múltiplas formas de expressar: a verdade, a farsa, a hierarquia, as festas, o desamparo, a controladora ideia de mobilidade social e a diversidade de uma sociedade politicamente única. É um “mundo” de relações sociais intrincadas.
Hoje gostaria de discutir o mundo dos bares como um lugar privilegiado para a discussão política.
Mesa posta, integrantes reunidos e conversa tentando arrumar um rumo. Segunda-feira, bar lotado – é meio de mês -, aparece o chato e aborrecido de sempre. O infeliz fala a mesma frase por meio da qual tenta sempre nos ofender e nos provocar: “reunida a Plenária dos esquerdistas de copo de uísque?”. Sabemos, como bons brasileiros, o valor da indiferença; não ouvimos, seguimos adiante. Jamais permitiríamos a presença de um estranho e paradoxal ser político como esse na nossa Segunda Sem Lei. Sugestivo o nome: aqui suspendemos a realidade e simbolicamente mudamos as leis, as regras e as normas.
Nessa mesa se reúnem velhos e bons amigos. Todos cinquentões, alguns beirando outra faixa etária, todos com elevado grau de instrução formal, todos de classe média (se adotarmos o critério do governo Fernando Henrique, seriam os colarinhos brancos; já para Lula de 89, seriam eles parte da classe média abastada). Todos gostam de política, gostam muito. Todos são leitores assíduos de jornais de circulação nacional. Todos são apreciadores de um bom uísque escocês. Trajetórias políticas parecidas, todos estiveram, sempre, ao lado da democracia e dos direitos humanos. Todas essas características em comum conferem certa identidade política ao grupo.
No sentido da interpretação de Roberto da Matta, transformamos a Segunda Sem Lei em uma rotina de festa, entregamo-nos às discussões de corpo e alma, largando nossas vidas individuais ordinárias de lado. Enfrentamos as discussões dos problemas, não os de natureza individual, mas aqueles que nos transtornam enquanto cidadãos.
Começamos sempre as nossas discussões falando sobre o destino e os caminhos da sociedade brasileira e os recentes acontecimentos do mundo. Tudo é evocado a partir de lembranças recentes, como se tivéssemos congelado as páginas dos jornais da última semana em nossa retina. Falamos de tudo e de todos. Destituímos Ministros, alteramos súmulas do Supremo, traçamos novas políticas públicas, repensamos a carga tributária, fazemos moções de protesto em relação ao golpe do Paraguai, há muitos anos libertamos Mandela, fizemos oposição à falta de liberdade política em Cuba e na Rússia, repudiamos cada dia do governo de W. Bush, somos solidários às causas do povo palestino e torcemos para que o Papa não fosse Argentino. Somos devastadores.
Em geral, encontramos o consenso. Fazemos previsões sobre o futuro, somos oráculo, realizamos análises prospectivas, não só sobre a natureza da mudança, mas também sobre quando elas acontecerão. Até hoje, somente uma discussão provocou uma grande divisão nesse grupo. Poucos se lembram dela, mas foi por ocasião do plebiscito sobre o regime de governo no Brasil: parlamentarismo x presidencialismo. Bizarro, foi a única matéria importante a ser discutida no país em que o PSDB e o PT estiveram do mesmo lado – ambos os partidos desejavam o mesmo poder e como ele sempre existiu na República Brasileira: centralizador e único dono do orçamento da União. Na nossa mesa, a maioria foi derrotada.
Recentemente estabelecemos um consenso sobre qual das reformas estruturais seria a mais importante para o país e para a nação brasileira. Escolhemos a reforma política. Consultados os oráculos – são tantos quanto os participantes da mesa -, depois de longas discussões, chegou-se à conclusão de que ela não virá no curto e no médio prazo. Como todos são cinquentões e como alguns já romperam essa fronteira, passamos a discutir quem estará vivo para votar. Óbvio! A conversa virou um inferno, quase todos estarão mortos, os mais otimistas afirmam que irão votar, mesmo que seja em cadeiras de rodas, com um cobertor Paranaíba no colo, mesmo correndo o risco de serem esquecidos debaixo de um sol causticante em uma seção eleitoral.
Assim passa a nossa vida como cidadão. De segunda em segunda, com mais lei ou menos lei, com mais festa ou menos festa. Apreciamos a mesa farta, rodeados de delícias, reformamos o mundo em alegre e harmoniosa confraria. Aqui somos livres, acertamos as nossas diferenças, anulamos as nossas oposições e enfrentamos os nossos paradoxos e contradições. Cansados da ausência de alternativas de participação política oferecida pela sociedade brasileira, só nos resta apostar em duas possibilidades: no bar enquanto um espaço democrático e reformulador do mundo e na democracia digital, esta última com possibilidade para se tornar uma ferramenta devastadora para fazer política, algo sem precedentes. Pessoalmente, ambas me agradam.
Finalmente, nossa mesa sobreviveu ao Collor, dois mandatos de FHC, dois de Lula, um de Dilma e, provavelmente, sobreviverá a mais um mandato dela. Temos mais vitalidade, longevidade e sonhos do que nossos governantes e nossa Administração Pública.
No final da noite, não sabemos mais de que Brasil ou brasil falamos. Alcoolizados, voltamos para casa, concedemos “boa noite” para a lua e vamos dormir. Ao amanhecer, preocupados com as regras da vida cotidiana, não concedemos “bom dia” ao dia.
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