O governo não metabolizou as inesperadas manifestações ocorridas no meio do ano passado e, muito menos, as que ainda ocorrem em várias capitais brasileiras. Pelo que tudo indica, continuará a tratar esses movimentos sociais ora com indiferença política, ora com a força policial e, em certos momentos, com ambas.
Sintomática a declaração feita pelo Secretário Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, de que os integrantes do governo federal ficaram perplexos e com “quase um sentimento de ingratidão” pelo fato de os protestos terem se voltado contra um governo que tanto teria avançado em conquistas sociais. Essa percepção de que parte da população brasileira é ingrata em relação ao governo e ao PT não é nova. Em comício em Belo Horizonte – marcado para um dos bairros mais nobres da cidade – nas eleições de 2010, Lula e a então candidata Dilma foram recebidos com sonoras vaias. A reação do então presidente não foi diferente: os presentes foram acusados de ingratos.
Existe uma autoimagem, compartilhada coletivamente pelo governo e pelo partido, de que muito fizeram para a redução das desigualdades sociais. De fato, muitos foram os programas sociais criados, e os resultados são altamente positivos. Mesmo os mais combativos dos oposicionistas não negam essas realizações. No entanto, o governo e o partido, assim como a grande maioria da oposição, não conseguiram ver e compreender a existência de um grande segmento de brasileiros que não foram beneficiados, na última década, com políticas públicas adequadas. São eles os moradores das grandes cidades brasileiras, de classe média baixa – aqui não quero entrar na discussão do que vem a ser classe média -, que assistiram cotidianamente despencar a sua qualidade de vida. Esses brasileiros gastam em média quatro horas por dia para ir e vir do trabalho, não possuem adequada atenção na área de saúde, pagam elevados preços por péssimos serviços públicos, vivem em constante sentimento de insegurança, perderam capacidade de compra e são vítimas de uma das mais altas cargas tributárias do mundo. Para esses brasileiros não existem realizações significativas, eles são os que vão para a rua e protestam. Os verdadeiramente beneficiados nos governos petistas foram os extremamente pobres e os extremamente ricos.
O preocupante é que existe, subjacente à percepção de ingratidão, uma censura política dirigida aos que protestam em relação às falhas, às omissões e aos erros governamentais. Qualquer crítico será taxado de direitista, conservador ou neoliberal. O governo não entende a diferença entre reconhecimento e gratidão; mesmo no auge das manifestações, os níveis de aprovação do governo eram elevados, e Dilma era bem cotada nas intenções de voto mesmo entre os manifestantes. Ou seja, reconhecimento havia, mas gratidão, não. Não é possível deixar de fazer um paralelo, guardadas as devidas diferenças, com a derrota eleitoral sofrida por Winston Churchill logo após o término da segunda guerra mundial; para ele, mesmo depois de todo o esforço de anos de guerra, foi compreensível a vontade do povo inglês de eleger um trabalhista. Nunca cobrou gratidão. Para o governo e parte expressiva dos petistas, é incompreensível não ser amado e muito menos preterido.
Caso esse compartilhado sentimento ficasse somente nos gabinetes e corredores palacianos, seria apenas um muxoxo, e não valeria a pena discutir o assunto. No entanto, o Ministro Celso Amorim, somente após uma avalanche de críticas, resolveu revisar o recém-lançado, e por ele assinado, Manual de Garantia da Lei e da Ordem, que cria as regras para o emprego das forças armadas em momentos como a Copa e as eleições. Assim, o governo se prepara para conter as grandes manifestações que certamente ocorrerão durante a Copa do Mundo. Na matéria publicada pela Folha de São Paulo no dia 25 de janeiro, podemos ter acesso a alguns conceitos utilizados no documento. Vejam alguns deles: “forças oponentes”, “movimentos ou organizações” e “ameaça”. Segundo Amorim, o Manual não traz nada de novo e só codifica o que é previsto na Constituição Federal. Não resta dúvida alguma de que o famigerado Manual foi editado a partir do temor em relação às grandes manifestações urbanas recentes e em relação às que virão.
Nos últimos dez anos, fui surpreendido várias vezes pelo governo e pelo PT, mas não a esse ponto.
Dessa forma, nossos manifestantes, que já enfrentam gás lacrimogêneo, spray de pimenta, balas de borracha, bombas de efeito moral, cassetetes e algemas, devem se preocupar também com os urutus e as baionetas e com, provavelmente, uma legião de recrutas recém-elevados ao posto de soldados.
Caso haja o uso da força para conter as manifestações e a restrição de acesso às regiões demarcadas com “áreas Fifa”, não resta dúvida de que estaremos diante de uma suspensão temporária dos direitos e garantias constitucionais dos cidadãos que querem protestar. Existe no horizonte o risco de uma grave ofensa ao direito de reunião, de associação e de censura à imprensa. Não existe outro conceito para isso que não seja estado de sítio.
Se por um lado o governo se prepara para a guerra, por outro não percebemos nenhuma iniciativa com o objetivo de estabelecer um canal de interlocução verdadeiramente democrático com os insatisfeitos – nessa área, há um grande vazio.
Será inevitável. Durante a Copa do Mundo, os manifestantes irão mostrar para o mundo o Brasil como um país de grandes desigualdades sociais, nossas contradições e nossos impasses históricos serão expostos. Todos poderão assistir ao vivo aos manifestantes levando os seus sonhos e aspirações para passear nas ruas e praças de todas as grandes cidades brasileiras.
Na sociedade urbana brasileira, parece que “há mais ingratos do que sapatos”.
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