*Milton Marques, consultor da Innovare Pesquisa para projetos de opinião pública, é autor desse texto, exclusivo para o Sem Escala.
“Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro. Mas cada um via uma coisa diferente, e cada um portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade”. Fernando Pessoa
Encontrei-me em um bar, para conversar e tomar umas e outras, com dois amigos que acabaram se zangando. A discórdia se instaurou em função de uma acalorada discussão política. Esses dois amigos são muito parecidos e têm trajetórias de vida muito similares. Ambos foram militantes de esquerda, e ainda são. Atuaram nos movimentos estudantis e em todas as manifestações para a redemocratização do país. Um deles foi, até recentemente, filiado ao PT; o outro sempre foi eleitor e ativista em prol das candidaturas do PT, à sua maneira, muito atuante. Comemoram juntos, no mesmo bar, a vitória eleitoral e o promissor governo Lula, nutrindo o mesmo temor sobre a possibilidade de um golpe de Estado.
Acompanharam com atenção e entusiasmo a formação do governo. Compartilharam o primeiro grande susto: Henrique Meirelles como Presidente do Banco Central. Bom não era, mas o mercado precisava ser acalmado, e podia ser tão somente uma jogada de maestria política. Contudo, os Ministérios ainda traziam Roberto Rodrigues, Miro Teixeira, Ciro Gomes, Anderson Adauto, dentre outras indicações que faziam tremer as históricas bases eleitorais. Seriam indicações toleráveis, para ambos, em nome da governabilidade. Afinal de contas quem daria de fato as cartas do governo seria o núcleo duro do partido. Temiam, na intimidade, que as surpresas não parassem por aí.
Ambos acompanharam com desgosto as mutações e mudanças do partido e de muitos filiados ilustres e históricos que chegaram juntos com Lula ao poder. Sobre isso não existem divergências entre ambos – estão amplamente de acordo sobre os descaminhos em nome de uma suposta exigência de estabilidade política. Ver Roberto Jefferson denunciar a prática de compra de votos na Câmara foi um golpe quase definitivo no imaginário que tinham do partido.
Viam como muito promissoras as tentativas de estabelecer um programa de distribuição de renda, como nunca antes visto no país. Foram esses programas que deram alguma sobrevida à velha esperança petista – dos simpatizantes não ilustres – de transformar profundamente a sociedade brasileira. Esses programas foram o carro-chefe do que ainda podia ser defendido. Ambos os defenderam o quanto puderam.
Assistiram, em um curto espaço de tempo, à saída de figuras emblemáticas dos quadros do partido, dentre eles Marina Silva, Plínio de Arruda Sampaio, Hélio Bicudo, Heloísa Helena (expulsa do partido), Chico Alencar, Cristovam Buarque e tantos outros, que acharam a porta da frente para se retirar.
Processo semelhante aconteceu nas ruas, com militantes e simpatizantes de menor visibilidade. Cristovam Buarque, mesmo não tendo esta intenção, apontava para um sentimento compartilhado entre muitos identificados com o partido: “Eu não saí do PT, foi o PT que saiu de mim. Esse é o grande crime do PT. O partido é de gente honesta”.
Muitas foram as acusações de aparelhamento do governo, e os dois amigos viam nesse processo algo natural e desejável, pois era preciso governar com companheiros. Entretanto, ambos não estavam preparados para assistir a certo tipo de aparelhamento do partido e do governo, uma espécie de aparelhamento reverso. A porteira do partido e, por consequência, a do governo tinham sido abertas para todo tipo de gente. A partir de certo momento, era frequente ver empreiteiros, conservadores, colunistas de direita, antigos Udenistas e todo tipo oportunistas, que têm negócios a defender, saírem em defesa do governo e do partido. Para ambos, os tempos de agora são novos, agora é a era do reviramento.
Os dois amigos abandonaram a gravata vermelha, não mais colocam adesivos nos carros e, muito menos, comparecem às praças e ruas para balançar as bandeiras vermelhas do partido e, até mesmo, para pedir votos. Nos bares, não mais são enfáticos e veementes, não como antes, talvez nunca mais sejam. Tudo que não querem ouvir é a acusação de fazer parte disso tudo. Definitivamente não querem ser confundidos, ambos possuem uma biografia a ser defendida e preservada. Comungam igualmente a tristeza de ver sequestrada uma parte relevante de suas biografias.
Num momento de lamentação, ficam eles a imaginar como seria bom se tivesse sido possível, em um passado não muito remoto, criar um sistema de rastreabilidade genética, ou teste de DNA, por meio do qual teríamos hoje a capacidade de saber a história, o caminho político e a origem desses novos petistas. Para ambos, boa parte dessa gente não compartilha com eles uma identidade comum: eles não são nós, eles são eles.
Afinal de contas, com tantas concordâncias, por que se zangaram? Simples: para o ex-filiado, agora é hora de sair em busca de uma nova identidade política, e, para o eleitor e ativista, é hora de defender o que foi conquistado, mesmo sendo um arremedo, um desfiguramento daquilo que foi um dia um grande projeto. Conversa tensa, apartação.
Fiquei confuso, mas certo de que essa conversa se assemelha a muitos dilemas arqueológicos: a origem talvez esteja perdida.
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