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POR QUE ESCREVEMOS?

15-04-2013
Postado por Margarete Schmidt em Comportamento

*Margarete Schmidt, sócia da Innovare Pesquisa de Mercado e Opinião e gestora dos projetos qualitativos da empresa, é autora desse texto, exclusivo para o Sem Escala.

Quando deitamos nossa atenção para as correspondências trocadas entre mestres da escrita do século passado, somos tomados pela exata dimensão da angústia que os assomava. Conflitos psíquicos, frustrações pela desaprovação de suas letras, expectativas em torno de sua aceitação e também inseguranças diversas lotavam a pauta de seus dias. Gustave Flaubert defendeu de forma brilhante o posicionamento do escritor com as seguintes palavras:

 […] O autor, em sua obra, deve ser como Deus no universo, presente em toda parte, e visível em parte nenhuma. A arte sendo uma segunda natureza, o criador dessa natureza deve agir com o procedimento análogo. […] O efeito, para o espectador, deve ser uma espécie de assombro. Como tudo isto foi feito? É o que se deve dizer, e sentir-se, esmagado sem saber por quê. […] Em carta a Louise Colet. Croisset, noite de quinta, 1 hora, 17 de dezembro, 1852. Cartas exemplares, Editora Imago – Rio de Janeiro, 2006.

Segundo Flaubert, ao criar um mundo paralelo o escritor deveria sentir-se como um Deus que cunha causas e consequências. Mantendo-se à parte, além de preservar sua individualidade, o escritor deveria causar uma hemorragia de emoções no leitor, fazendo-o submergir em seu mundo de letras.

Ainda que Flaubert tivesse como receita para o escritor a sugestão de que ele fosse o Deus das suas criações literárias, essa receita não parece ter alcançado os aspirantes a escritores da época. Em Cartas a um Jovem Poeta, Rainer Maria Rilke evidenciou ser o conselheiro que apoiou um aspirante ao ofício e que estava a soçobrar em meio às suas angústias. No trecho abaixo, podemos perceber o esforço de Rilke em “catequizar” seu pupilo a encontrar um estilo próprio de escrita:

[…] Pergunta-me se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: “Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas deste longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e fusco diante do qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. […] Em Primeira Carta, Paris, 17 fevereiro de 1903. “Cartas a um jovem poeta”, Editora Globo – Rio de Janeiro, 1995.

A beleza que extravasa desse esforço de Rilke está exatamente em mostrar ao Jovem Poeta que o ofício da escrita exige um mergulho nos meandros de si mesmo ou um fechar-se para os estímulos externos. Enquanto Flaubert dizia que o escritor deveria criar um mundo, Rilke sinalizava que o escritor deveria apenas descrever o seu mundo, as suas experiências, as suas emoções, a sua singularidade. Enquanto Flaubert dizia que o escritor deveria tirar o fôlego do leitor, Rilke observava que o escritor sequer deveria se preocupar com as opiniões externas.

O ofício da escrita nestes nossos tempos de imediatismo e de volatilidade de ideias poderia padecer de angústias distintas daquelas sofridas no século XIX. Mas não! 

Elas continuam sendo as mesmas. A angústia humana pelo reconhecimento continua expondo os aspirantes a escritores de hoje às mesmas fragilidades que atormentavam, por exemplo, o Jovem Poeta correspondente de Rilke. As receitas dos mestres não remediam as dores dos aspirantes. A busca pela aprovação e a sofreguidão gerada pelas negativas e pelo fracasso ainda afogam as sentenças e fazem tremer o pensamento criativo.

Hoje, assim como outrora, buscamos likes, buscamos aprovação, procuramos ser o que agrada ao outro. Sim, hoje, como ontem, continuamos humanos fadados a nos constituir a partir do olhar do outro. Estamos apenas em busca de reconhecimento, seja na literatura, seja no blog ou no Facebook.

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