*Paulo Savaget, sócio da Innovare Pesquisa de Mercado e Opinião e responsável pelos projetos de inovação e sustentabilidade da empresa, é autor desse texto, exclusivo para o Sem Escala.
Cleusa se mudou do Vale do Jequitinhonha para Belo Horizonte aos 15 anos, com pouca bagagem e nenhum sonho. Irmã mais velha de uma família de 8 filhos, Cleusa foi ‘dada’ pela mãe a uma senhora da capital, que prometeu emprego, moradia e arcou com os custos da sua viagem. Chegando lá, o que tinha que fazer era o mesmo que já fazia em sua casa: cuidar das tarefas domésticas.
Como era uma pobre menina do interior, Cleusa foi ‘domesticada’ pela patroa. Aprendeu os hábitos familiares, todas as rotinas e gostos de seus integrantes, assim como os modos de se comportar no novo meio social. Usava até uma roupinha uniformizada, pois, embora fosse ‘doméstica’, ou ‘do lar’, ela não era de fato um membro do lar.
Cleusa cozinhava para os patrões, mas não era permitido que comesse a comida. Afinal, em uma relação trabalhista os funcionários não comem as comidas dos chefes. Mas Cleusa não era, tampouco, uma funcionária como outra qualquer. O seu trabalho exigia sua total disponibilidade para atender as exigências familiares na hora em que precisassem. Isso significa que antes do almoço tinha que cozinhar e depois lavar a louça. A noite, cozinhava quando o patrão chegava faminto do futebol. Como a patroa acordava cedo, Cleusa tinha que acordar ainda antes para preparar o suco de laranja e as torradas, essenciais para um bom desjejum e para que a patroa iniciasse suas oito horas diárias de trabalho.
Ficava o dia inteiro à disposição. Como não podia comer a comida que cozinhava, Cleusa se alimentava entre uma tarefa e outra de biscoitos baratos que comprava nos domingos – seu único dia de folga. É óbvio que ela não podia cozinhar sua própria comida no dia a dia, dado que estava em horário de trabalho. E ela só não estava em hora de trabalho nos domingos.
O salário era bem baixo. Mas, segundo a patroa, isso tinha uma razão bem simples: ela morava na casa em que trabalhava e, desta forma, não teria muitos custos de vida. Seu dinheiro não iria para aluguel, para pagar conta de água, luz e telefone: seria livre, para gastar como bem quisesse.
Mantida as distinções de quem era ‘do lar’ e quem era ‘dono do lar’, Cleusa estabeleceu, contudo, uma relação afetuosa com os filhos dos patrões, que a chamavam de ‘mãe preta’. Uma relação quase maternal era de se esperar, dado que boa parte das funções maternas era Cleusa quem desempenhava. Além disso, Cleusa sabia que o seu serviço atual não permitiria que ela tivesse seus próprios filhos. Suas funções exigiam que ela dormisse no trabalho e se dedicasse em tempo integral. Mesmo se conseguisse um emprego no qual teria horários fixos e dormiria na sua casa, ela sabia que passaria mais tempo cuidando dos filhos dos outros do que dos que ela viesse a ter.
Ou seja, Cleusa era doméstica, mas não se sentia em casa. Já os patrões a consideravam uma pessoa ‘da casa’, como se propriedade fosse. Um dia Cleusa recebeu e aceitou uma proposta de emprego de uma amiga da sua ex-patroa, que ofendidíssima reclamou: “Ela roubou minha empregada!”. Ainda acusou Cleusa de não ter gratidão por quem a tirou da pobreza do semi-árido.
O que Nabuco no final do século 19 profetizou, Caetano no final do século 20 endossou: “A escravidão permanecerá por muitos anos como a característica nacional do Brasil”. Tão incorporada na cultura brasileira, que é “como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos”. Talvez seja por isso que vemos tantas manifestações contrárias à PEC das domésticas.
Dizem que os críticos são patrões insatisfeitos com o aumento nos custos e alteração nas condições de trabalho. Não consigo acreditar, contudo, que seja só isso. Isso fica nítido em um texto publicado pelo Guilherme Fiuza, chamado “A Revolução das Empregadas”, no qual utiliza vários mitos para justificar a tradicional relação trabalhista das domésticas como se fossem o melhor para o bem público. Utiliza de diversas variáveis, tais como inflação, mercado de trabalho, arrecadação governamental e desemprego. Chama a PEC ironicamente de “conto de fadas dos oprimidos”. No entanto, ignora que as suas crenças, interesses e prioridades também não são tão isentas de valores assim. A PEC pode, sim, representar um “conto de fadas dos oprimidos” mas pessoalmente prefiro este ao “conto de fadas dos opressores” – narrativa que, lentamente, estamos deixando para trás.
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